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Com 15 anos, Rio Sem LGBTIfobia tem desafio de ampliar alcance

O psicólogo Alexander Borges, de 26 anos, veio de Cuiabá para o Rio de Janeiro morar com a noiva e teve dificuldades para encontrar um emprego. As contas mensais eram pagas apenas com a ajuda dos pais e da sogra.
A situação provocou uma tristeza profunda, até descobrir que, como homem trans, poderia contar com o apoio do programa estadual Rio Sem LGBTIfobia.
“Minha noiva descobriu o programa, disse que eles tinham psicólogos e ajudavam com questões de emprego”, conta Alexander. “Eu estava muito triste e ansioso. Foram muito atenciosos e me apoiaram bastante. E o programa me encaminhou para uma oportunidade de emprego no Tribunal de Justiça. Participei e passei no processo seletivo”.
Alexander assinou a carteira de trabalho na última segunda-feira (23) e já começou a trabalhar na terça (24). No mês do Orgulho LGBTQIA+, celebrado sempre em junho, ele comemora a conquista e defende a importância de programas voltados para a garantia de direitos fundamentais da população LGBTQIA+.
“Essas pessoas muitas vezes estão em situação de vulnerabilidade social e econômica. Muitos nem têm noção de que existe esse tipo de ajuda e que possuem direitos básicos de vida. O programa ajuda a lembrar constantemente a importância da luta”, diz Alexander. “Espero que essa vitória coletiva continue. E que o programa seja mais divulgado, porque é transformador, abre muitas portas”.
Iniciativa pioneira
O Rio Sem LGBTIfobia completou 15 anos no mês de maio, e é um exemplo de iniciativa pública que permitiu avanços no atendimento das demandas e necessidades do público-alvo.
Geridos pelo programa, os Centros de Cidadania LGBT acolhem tanto pessoas em situações de violência como outros que precisam de informações mais gerais. São ofertados atendimentos jurídico, social e psicológico a pessoas lésbicas, gays, bissexuais e transgêneras. Funcionam ainda como espaços de mobilização por políticas públicas de combate à homofobia e à transfobia.
O atual coordenador do Rio Sem LGBTIfobia, Ernane Alexandre Pereira, destaca a ampliação do alcance do programa ao longo dos 15 anos. Ele também é superintendente de Políticas para LGBTI+ da Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos do governo do estado do Rio de Janeiro.
“Hoje, temos 23 equipamentos espalhados nos 92 municípios do Rio de Janeiro. Essa interiorização permite que nossas boas práticas e políticas públicas possam se estender para a população mais distante da capital. A gente consegue acolher melhor vítimas de violência ou outras pessoas que precisam de apoio. É um trabalho feito com equipe multidisciplinar, com assistentes sociais, advogados, psicólogos”, diz Ernane.
Histórico
No principal edifício da Central do Brasil, por onde milhares de pessoas circulam diariamente, não é só o tradicional relógio de quatro faces que se destaca. De longe, as janelas do sétimo andar chamam a atenção por ter uma bandeira grande arco-íris e um número de telefone: 0800-023-4567.
O Disque Cidadania LGBT funciona 24 horas por dia, e sete dias por semana. O canal telefônico é uma das principais ferramentas de atendimento do Rio Sem LGBTIfobia, que tem o prédio da Central do Brasil como sede administrativa desde o início do programa, em 2010.
Alguns antecedentes ajudam a entender o processo de formulação do programa estadual. Primeiro, é preciso considerar que ele surge depois de um histórico de lutas da população LGBTQIA+, que desde as últimas décadas do Século 20 pressionava o poder público por iniciativas específicas e direitos fundamentais.
No contexto estadual, uma das primeiras conquistas foi a Lei 5.034/0749, em maio de 2007. Sancionada pelo governo, ela concedeu benefícios previdenciários para parceiros homoafetivos de servidores públicos.
No mês seguinte, um decreto estadual estabeleceu que fosse constituída uma câmara técnica para elaborar o programa “Rio Sem Homofobia”. Era composta por 28 membros, que incluíam acadêmicos, organizações da sociedade civil, parlamentares estaduais e representantes de órgãos do Estado do Rio.
Havia, nesse período, um esforço da Superintendência de Direitos Individuais Coletivos e Difusos (Superdir) para implantação, expansão e qualificação de ações e serviços voltados para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.
Em abril de 2009, foi publicado o decreto que criou o Conselho LGBT do estado do Rio de Janeiro, vinculado à Superdir.
Finalmente, em junho de 2010, foi iniciado oficialmente o “Rio sem Homofobia”. Os primeiros centros de referência foram inaugurados nesse primeiro ano, na capital fluminense e em Nova Friburgo.
O nome atual do programa foi estabelecido em agosto de 2020, por meio de decreto. O entendimento era de que a expressão “homofobia” não dava conta de todos os grupos LGBTQIA+ atendidos pelo programa, já que se refere à discriminação contra homossexuais, grupo que só abarca as letras L e G da sigla.
Em novembro de 2021, é sancionada a Lei 9.496 pela Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). O Rio Sem LGBTfobia deixa de funcionar por decreto, como um programa de governo, e passa a ser um programa do estado.
Desafios
Para o coordenador do Rio Sem LGBTIfobia Ernane Alexandre Pereira, há muito o que se comemorar pelo avanço do programa, mas alguns desafios precisam ser enfrentados nos próximos anos para torná-lo mais eficiente.
“Vejo ainda a necessidade de estender o programa para mais municípios do Rio. Não conseguimos dar conta do número de demandas que o estado tem. Também precisamos melhorar a infraestrutura dos equipamentos. As equipes precisam de veículos, por exemplo, para deslocamento e atender as demandas em menor tempo”, diz Ernane.
“Parcerias público-privadas também precisam ser alcançadas. Precisamos de mais apoio e de diálogo direto com as prefeituras. Um suporte maior. Muitos municípios ainda não abriram as portas para a gente dialogar sobre a nossa pauta”, complementa.
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Onda de frio deve atingir pelo menos sete estados, alerta Inmet

O Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet) emitiu neste domingo (29) dois alertas laranjas e que indicam fortes ventos na costa do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina e declínio de temperatura para sete estados brasileiros até a segunda-feira (30).
O alerta laranja é o segundo de maior gravidade na escala utilizada pelo Inmet, abaixo somente do alerta vermelho, e significa situação de perigo.
O primeiro alerta, de ventos costeiros, vale até as 03h da manhã de segunda-feira (30). Segundo o Inmet, o alerta indica grande movimentação de dunas de areia sobre construções da orla e vale para a Grande Florianópolis, a Região Metropolitana de Porto Alegre, o Sul Catarinense, o Sudeste Rio-Grandense, o Vale do Itajaí e o Nordeste Rio-Grandense.
Já o alerta de onda de frio vale até as 23h59 de segunda (30) e indica que a temperatura pode cair mais do que 5 graus Celsius (ºC) em sete estados brasileiros: Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Mato Grosso e Rondônia.
Chuvas
O Inmet prevê que chuvas intensas devem continuar atingindo o sul do país até segunda (30). Segundo o instituto, a formação de um novo sistema frontal neste domingo reforçará as instabilidades sobre grande parte do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, com acumulados podendo exceder os 100 milimetros.
Rajadas de vento e raios também estão previstos para toda a região. No decorrer da noite, as instabilidades mais fortes devem atuar sobre Santa Catarina e Paraná, podendo chegar ao sul do Mato Grosso do Sul, já se distanciando do Rio Grande do Sul.
Já na segunda (30), as condições de chuva no Rio Grande do Sul devem enfraquecer, mas persistem em áreas localizadas do Paraná e de Santa Catarina, sul de São Paulo e do Mato Grosso do Sul. Novas instabilidades, contudo, poderão voltar a ocorrer no Rio Grande do Sul entre terça-feira (1º) e quarta-feira (2).
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Brasil adere a declaração sobre direitos da população LGBTQIA+

O Ministério das Relações Exteriores informou, pelas redes sociais, que o Brasil aderiu à declaração conjunta proposta pela Espanha em favor dos direitos das pessoas LGBTQIA+.
Além dos governos brasileiro e espanhol, o comunicado foi assinado pelos representantes da Colômbia, Austrália, Bélgica, Cabo Verde, Canadá, Chile, Eslovênia, Islândia, Irlanda, Noruega, Holanda, Portugal e Uruguai.
De acordo com o texto divulgado pelo governo espanhol, o Brasil e mais 14 países unem esforços pela promoção de políticas de diversidade e de combate à violência. O comunicado foi elaborado em alusão ao Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, comemorado nesse sábado (28).
“Reiteramos nosso compromisso com o respeito aos direitos humanos das pessoas LGBTQIA+ para que sua igualdade na lei seja indiscutível e para que nenhuma pessoa seja criminalmente perseguida ou discriminada por razão de sua orientação sexual e identidade de gênero”, diz a declaração.
De acordo com o governo brasileiro, a adesão mostra o comprometimento do país com a promoção da igualdade e o combate à discriminação.
“Ao apoiar essa declaração, o Brasil reafirma o seu compromisso em atuar no plano multilateral para promover avanços e impedir retrocessos nos direitos da população LGBTQIA+”, declarou o Itamaraty.
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Dona Zica, 92 anos: da infância como doméstica à liderança sindical

Cercada pelas montanhas do Parque da Serra do Mendanha, está uma pequena casa, em uma rua de Vila Aliança, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro. A porta desta casa, de muro verde água, fica sempre aberta. Os desavisados que entram correm o risco de tropeçar pipas, cerol e linha, explicados pelo entra e sai de crianças. É ali que mora Anazir Maria de Oliveira, a Dona Zica, de 92 anos, como ficou conhecida. Ela não tranca a porta, mas não só pelos bisnetos, que empinam pipa na rua. Liderança comunitária do bairro, que ajudou a urbanizar, ela é muito procurada por seu trabalho de referência política, social e religiosa ─ ela ainda é coordenadora na Pastoral Afro-Brasileira da Arquidiocese do Rio de Janeiro.
“O papel das igrejas, hoje, é incentivar a luta coletiva, principalmente, a juventude”, disse ela. “É preciso incentivar os jovens a estarem nos movimentos sociais, para que possam ampliar o conhecimento sobre a sociedade e contribuir para o seu próprio futuro, para que haja esperança, entende? Nossas conquistas nunca foram fáceis”, completou.
A trajetória de Dona Zica, que nasceu em Manhumirim, na zona da mata mineira, alcançou montes além dos do Medanha. Ela é uma das lideranças que fundaram, nos anos 1980, o Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Município do Rio de Janeiro, a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Partido dos Trabalhadores (PT).
Mas, para Zica, a luta das domésticas sempre foi a mais importante. Foi a profissão que ela exerceu por mais tempo: começou muito nova no ofício, aos 9 anos, quando chegou a ficar três meses sem salário. Hoje, o trabalho doméstico remunerado feito por crianças e adolescentes até 17 anos é proibido e considerado uma das piores formas de trabalho infantil, por expor as pequenas a riscos de violências e lesões.
Dona Zica veio aos 11 anos para o Rio de Janeiro, acompanhar a mãe e um irmão, em busca de uma vida melhor. Na cidade natal, deixou para trás nove irmãos falecidos, que não resistiram àqueles tempos de desassistência. Em junho de 2025, Anazir completou 92 anos junto com os dez anos da Lei Complementar 150, que regulamentou os direitos trazidos pela PEC das Domésticas. Entre eles, o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), o seguro-desemprego, auxílio-creche, salário-família, adicional noturno, indenização por demissão sem justa causa e o pagamento de horas extras.
A luta dela, no entanto, é bem anterior, quando empregadas domésticas sequer tinham direito a folga semanal remunerada. “Até 2013, não tínhamos uma lei que garantisse o descanso semanal. Era um benefício que, se os patrões quisessem, eles davam, se não quisessem, não, entendeu?”, explicou Anazir.
Domésticas na Constituinte
Nos anos 1980, ao defender o descanso no Congresso Nacional, ela se deparou com o rechaço do deputado Amaral Neto (na época, do PDS, que serviu de base para formação do PFL, atual União Brasil). “Ele disse que, aos finais de semana, queria ser servido em casa. Mas nós respondemos que ele nunca mais teria um voto de empregada doméstica”, relembrou.
A atuação na Constituinte, em 1988, era para que as domésticas fossem consideradas uma categoria profissional. Zica liderou a Associação de Trabalhadoras Domésticas, naquele momento, quando a entidade foi transformada no Sindicato dos Domésticos do Rio. Ela trabalhava no Leblon, na zona sul, e, de noite, pegava um ônibus para Brasília, para conversar com parlamentares. No mesmo dia em que chegava na capital federal, ela voltava, direto para o trabalho. Com a nova Constituição, elas conseguiram férias remuneradas de 30 dias, o 13º salário, o direito ao aviso prévio e um dia de descanso pago durante a semana.
Para a atual presidenta do sindicato, Maria Izabel Monteiro, além da atuação pioneira, Zica é uma figura importante na defesa de avanços coletivos. “Estamos falando de direitos sociais das pessoas menos favorecidas, de direitos humanos”, frisou Monteiro.
Alianças e avanços
Em entrevista à Agencia Brasil, Anazir falou sobre sua trajetória pessoal, o sindicato, destacou o papel da Igreja Católica na organização embrionária das domésticas em pastorais e do apoio do movimento feminista, de mais mulheres brancas.
“A gente deu força para elas e elas nos deram força também. Adquirimos experiência na relação, pela trajetória de reivindicação que elas tinham acumulado”, saudou Anazir.
Trabalhou como lavadeira e passadeira por 40 anos, é mãe de seis filhos, e, depois dos 40 anos de idade, voltou a estudar: cursou duas universidades, de pedagogia e serviço social — que concluiu aos 83 anos. Em sua trajetória, a ativista transformou patroas em aliadas, que financiaram e apoiaram suas atividades. E também fez do esposo, Jair Benedito de Oliveira, seu parceiro. Ele faleceu em 1997, e todas as noites em que Zica saía para suas luta política ele esperava, da varanda, a companheira voltar de seus compromissos.
Zica reconhece os avanços das domésticas, mas defende que a lei inclua as diaristas, cujos salários e contribuições para previdência são mais baixos e vulneráveis. Ela defende a importância da carteira de trabalho, que vem sendo desprezada por categorias e jovens, e cobra fiscalização contra a informalidade, o trabalho doméstico escravo e infantil.
“Nós, trabalhadoras domésticas, temos uma herança que vem desde a escravidão. Todos os trabalhadores têm suas dificuldades, e patrões não pagam [salário] porque querem, pagam porque são obrigados. Mas as empregadas domésticas, mesmo com patrões sendo obrigados a pagar, têm que correr atrás. A gente vive ainda numa realidade em que o nosso trabalho, um trabalho braçal, deve ser feito sem nenhuma recompensa. Contribuímos para que os nossos opressores chegassem onde chegaram, com camisas bem passadas e alimentados. Mas essa dívida não foi paga”.
O Brasil tem 6 milhões de empregados domésticos, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2022, sendo que seis em dez são mulheres negras. Apenas três em dez contribuem para a previdência, e somente 24,7% têm carteira assinada. A categoria tampouco tem direito ao abono salarial, pago para quem ganha até dois salários mínimos, e só recebe três das cinco parcelas de seguro desemprego a que todos os demais trabalhadores com carteira assinada têm direito.
Melhores trechos da entrevista
Agência Brasil: Quando a senhora começou a trabalhar como empregada e como foi o despertar para a defesa de direitos na profissão?
Dona Zica: A minha mãe era trabalhadora doméstica em uma fazenda, em Manhumirim. Nessa fazenda, ela criou os filhos dos patrões, e, ali, eu nasci, lidando com a plantação, a colheita de café. Vivi com ela até os meus 9 anos de idade, quando mamãe resolveu sair da área rural para a cidade. Então, ela me colocou para trabalhar com um dos filhos dos patrões que ela criou na fazenda. Eu tinha 9 anos, cuidava de duas crianças e fazia alguns serviços da casa. Mas minha mãe tinha noção da importância da escola, mesmo sem nunca ter frequentado. Eu fui a primeira pessoa da família a entrar em uma escola. Então, ela me deixou lá, desde que eu pudesse estudar.
Eu fiquei nesta casa até os 11 anos, quando começaram a atrasar o meu pagamento. No terceiro mês de atraso, eu fui embora para casa. E, aqui tem um fato que eu gosto muito de narrar, pois, mesmo eu sendo muito ingênua, uma menina, na época, depois de meses de atraso no pagamento, depois do patrão ter dito que não ia me pagar se eu não voltasse a trabalhar, eu decidi que ele ia me pagar. E, como eu gostava muito de estudar ─ estudava com filhos da classe média, com financiamento [de bolsa] da Caixa Escolar, em uma escola de freiras, naquela época não tinha escola pública ─ eu sonhava com os cadernos bonitos, tabuada, deles, que minha mãe não tinha condições de comprar. Certo dia, eu passei na loja e comprei os cadernos. Pendurei tudo na conta dos patrões.
Quando ele foi lá em casa reclamar, eu apenas respondi que: gastei o que o senhor me devia. E minha mãe me apoiou. Sempre gosto de relatar esse fato para chegar nas trabalhadoras domésticas. Porque eu vejo nesse acontecimento, sem eu ter nenhum conhecimento, nenhuma informação, a minha primeira reivindicação dos meus direitos enquanto trabalhadora doméstica.
Agência Brasil: A senhora pode nos contar sobre sua participação na fundação do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos, como começou a mobilização?
Dona Zica: A luta do sindicato começa aqui na comunidade. Depois da minha segunda remoção (Zica foi removida de São Cristovão para a Penha, e da Penha para Vila Aliança), para cá, a gente começa a formar grupos para discutir melhorias sociais para o bairro e recebe muito apoio da Igreja [Católica]. A Igreja incentiva a formação de grupos pastorais sociais. E, nesses pastorais, em meados dos anos 1970, o padre Bruno, um padre italiano, falou sobre a pastoral do trabalhador. E me chama para participar dessa pastoral do trabalhador, representando as empregadas domésticas ─ aqui tinha muita doméstica. Esse padre tinha uma visão de mundo maravilhosa.
Eu chamo duas amigas, e a gente começa a participar dessas reuniões, mas com uma dificuldade muito grande, pois, os assuntos, dissídio, negociação coletiva, data-base, não tinham nada a ver com a gente. Então, chamei as meninas para conversar e falei: a gente não entende nada do que os homens falam, vamos criar um grupo para nós? E desafiamos os trabalhadores a levarem suas esposas e filhos, que eram empregados domésticos. Nosso grupo ia ser bem maior. E foi. O padre deu apoio. Em 1976, fizemos o nosso primeiro encontro de domésticas aqui na comunidade. E, quando nós olhamos para aquele grupo, não sabia nem o que falar para aquelas mulheres. E agora? O que vou falar para elas? Não sabia como a gente ia conduzir o trabalho. Aí, eu falei assim: “Vamos falar mal das patroas”. Hoje, eu entendo que foi uma roda de conversa, uma troca de experiência muito boa. E foi quando eu descobri a carteira assinada. Como diarista, eu achava que não tinha direito à carteira, mas eu tinha. E foi quando eu me registrei e começou a correr o tempo para a minha aposentadoria.
Agência Brasil: Como a senhora falou com a sua patroa? A senhora já estava há muito tempo trabalhando na mesma casa?
Dona Zica: Eu trabalhava para três famílias, mas sempre tem uma família que é mais próxima. Esta, mais próxima, que fiz uma amizade além do trabalho, em 1976, depois dessa reunião que nos reunimos para falar das patroas, pedi para assinar a minha carteira. Estava lá há quatro anos. A relação das empregadas domésticas com as patroas é muito tímida, muitas não têm coragem de chegar e colocar o problema. Mas com essa patroa, de quem sou amiga até hoje, havia uma relação honesta entre nós. É preciso conversar. Eu era passadeira nessa casa, e, lá, não parava mensalista, a patroa era muito exigente. E eu largava o ferro para explicar, que aquela não era a casa da empregada, que ali ela não podia se sentir à vontade, fazer a refeição que quisesse… De tanto conversar, um dia, a mãe dela disse para mim: “Zica, eu tenho uma coisa para te falar”. Eu perguntei:o que foi D. Elsa? E ela respondeu: “Você transformou minha filha numa comunista”. Rimos.
Agência Brasil: Qual foi a participação da Igreja Católica na organização do movimento de domésticas?
Dona Zica: Em 1976, a gente criou esse grupo em Vila Aliança. Em 1978, era um grupo de empregadas domésticas da zona oeste. Nós conseguimos montar grupos de trabalhadoras em várias paróquias. As igrejas incentivaram muito. De Magalhães Bastos a Santa Cruz, nós tínhamos grupos e vimos a necessidade de procurar outros espaços de conhecimento, com outros trabalhadores, com os homens, que passaram a nos apoiar. Passamos a conhecer os sindicalistas. E, nessas conversas, descobrimos que já existia uma associação de empregadas domésticas, fundada em 1961, da qual nos aproximamos. E a nossa consciência e envolvimento vão crescendo até que sou eleita presidenta em 1982. Esse momento foi muito rico, porque a classe trabalhadora estava organizada, e os sindicatos, fortalecidos. Nós nos integramos, tivemos muito apoio dos demais.
Agência Brasil: E, hoje, qual deve ser o papel das igrejas, em geral, nos movimentos sociais, comunitários e dos trabalhadores?
Dona Zica: Os movimentos sindicais e as igrejas foram os que mais fortaleceram nossa luta. As pastorais, de favela, de trabalhadores, tinham a ver com a gente, e nós começamos a buscar uma integração com essas pastorais [grupos organizados pelas dioceses, que se reúnem para discutir temas específicos e promover a comunhão].
Agência Brasil: Em defesa das domésticas, qual foi a participação dos movimentos negro e de mulheres?
Dona Zica: O movimento feminista era um movimento de patroas, mas nós chegamos junto porque também queríamos defender nossos direitos enquanto mulheres. A gente deu força para elas e elas nos deram força também. Adquirimos força e experiência. Com elas, aprendemos que tínhamos força e o direito de ter direitos.
Anazir Maria de Oliveira, conhecida como Dona Zica, 92 anos Tânia Rêgo/Agência Brasil
Naquela época, a gente queria usar calça comprida. Mas meu marido, machista, falava que “o homem dentro de casa sou eu”. E a luta feminista nos ajudava a entender que, assim como homem, a gente trabalhava, investia na família da mesma forma, então podíamos usar uma calça jeans, porque devíamos ser tratadas como iguais em todos os aspectos. E, assim, na Constituinte, tínhamos muito apoio dos movimentos. Tinha a Benedita da Silva, que foi e é o maior instrumento para nós. Ela apoiou e investiu muito na nossa pauta.
Agência Brasil: Olhando para trás, desde o início da luta das domésticas, a Lei Complementar 150 foi suficiente?
Dona Zica: Os nossos direitos vieram parcelados. Em 1972, conquistamos o direito à Previdência Social, à aposentadoria. Depois da Constituinte, avançamos mais um pouco. Mas, só em 2013, conseguimos equiparar os direitos aos demais trabalhadores. A PEC e a LC 150 foram o auge de uma luta que vem desde a década de 1960. Foram esses anos todos para alcançar os direitos dos outros trabalhadores, mas ainda precisa avançar no direito das diaristas, por exemplo, que sofrem injustiça. Muitas foram demitidas, na época da PEC, para não terem que ser regularizadas, ou seja, estão sem carteira.
Agência Brasil: Como a senhora vê grupos de trabalhadores e jovens contra a carteira assinada, enquanto as domésticas querem a formalização?
Dona Zica: Muitos trabalhadores já tiveram a CLT e nós não tínhamos nada. Queremos entrar porque não tem nada que nos garanta. Nós temos valor para a economia.
Agência Brasil: Por que a sociedade tem dificuldade de ver valor social nas empregadas? Como enfrentar esse problema?
Dona Zica: Nós, trabalhadoras domésticas, temos uma herança. Uma herança que vem desde a escravidão. Porque as mulheres negras sempre foram as prestadoras de serviços para as famílias, como se nós não tivéssemos a nossa própria vida, certo? Então, assim, eu acho que, hoje, apesar [das cobranças] do movimento negro, as empregadas ainda não estão totalmente emancipadas da escravidão.
Eu sei que todos os trabalhadores têm suas dificuldades, e os patrões não pagam [salário] porque querem, pagam porque são obrigados. Mas as empregadas domésticas, mesmo com patrões sendo obrigados a pagar, elas têm que correr atrás. A gente vive ainda numa realidade de que o nosso trabalho, um trabalho braçal, deve ser feito sem nenhuma recompensa. Contribuímos para que os nossos opressores chegassem aonde chegaram, com camisas limpas e bem passadas e alimentados. Mas essa dívida não foi paga.
Agência Brasil: Como a senhora vê o Congresso Nacional hoje, há espaço para avançar com ampliação de direitos das domésticas e demais trabalhadores?
Dona Zica: Do jeito que está, não só as domésticas, mas a classe trabalhadora, precisam voltar a se mobilizar. É preciso voltar com a formação política. As lutas precisam ser em conjunto. Se uma categoria está revoltada, precisa se unir a outras. A sociedade, junta, em luta, consegue mudanças. A luta política e social é a luta por construção de futuros.
Agência Brasil: Por fim, como a senhora trouxe seu esposo para o movimento, como os homens podem apoiar as esposas que são sindicalistas?
Dona Zica: Quando eu comecei a participar das discussões de organização de uma possível central sindical, eu viajei muito. Tinha muitos encontros fora do Rio, essa coisa toda. Eu me casei com 17 anos, mas só fui sair de casa sem marido e filho em 1976, já com 43 anos, quando comecei as andanças da igreja. Naquela época, a maioria dos sindicalistas também eram atuantes nas pastorais. E, assim, fui conversando com meu esposo, com bastante antecedência, avisando sobre os eventos.
No começo, ele me perguntava: “Mas essas mulheres não têm o que fazer dentro de casa? Para passar um dia todo fora?”, mas fui dobrando ele, explicando o que discutíamos, relatava as discussões e o motivo de chegar tarde em casa. Então, com o tempo, ele, pedreiro, foi me ajudando a organizar os congressos e atividades. E a ficar com os filhos, crescidos, já, e a casa.