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Norma que considerou publicidade infantil abusiva completa 10 anos

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Norma que considerou publicidade infantil abusiva completa 10 anos
© Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

“A gente tinha uma cultura maior de assistir televisão, tinha os programas infantis, que tinham os desenhos animados, e os intervalos eram um tempo grande e tinha bastante publicidade. Me lembro de ter anúncio de bonecas e brinquedos, e mesmo nos programas infantis havia também essa publicidade de alguns brinquedos, né, de forma bem intensa. Ainda lembro de alguns jingles, Lá lé lí ló Lu Patinadora, Big Trem, Danoninho dá”. 

“O menininho do cigarro, que tinha um chocolate em forma de cigarro, do compre Batom, que era tipo de hipnotizar a criança. Parmalat, que era a propaganda com as criancinhas vestidas de bichinhos, eu quero uma Calói. E daqueles joguinhos, cara-a-cara, dos brinquedos do Gugu, do Domingo Legal, dos jogos que ele fazia. Lembro de Comandos em Ação, era muito propaganda de brinquedo. E de alimentos processados, Danoninho, Tang”. 

Após 10 anos da Resolução 163 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), essas cenas descritas pela antropóloga Renata de Sá Gonçalves, 47 anos, e pelo professor universitário Thiago Silva Freitas Oliveira, 42 anos, não são mais vistas na televisão. Crianças nos anos 1980 e começo dos 1990, os dois cresceram em uma época em que era muito comum o que ficou conhecido como publicidade infantil abusiva, com os anúncios que se proliferavam especialmente em outubro, mês das crianças, e em dezembro, antes do Natal. 

A norma, que completou uma década em março deste ano, “dispõe sobre a abusividade do direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica à criança e ao adolescente” e, na prática, retirou as propagandas dirigidas ao público infantil dos meios de comunicação tradicionais.
 


Rio de Janeiro (RJ) 30/10/2024 - A antropóloga Renata Gonçalves e sua filha Rosa, de 10 anos.
Foto: Renata Gonçalves/Arquivo Pessoal
Rio de Janeiro (RJ) 30/10/2024 - A antropóloga Renata Gonçalves e sua filha Rosa, de 10 anos.
Foto: Renata Gonçalves/Arquivo Pessoal
A antropóloga Renata Gonçalves e a filha Rosa, de 10 anos. Foto: Renata Gonçalves/Arquivo Pessoal

As crianças que nasceram com a Resolução 163 em vigor sabem o que são os comerciais, mas têm uma lembrança diferente de seus pais, como Rosa, de 10 anos, filha de Renata. 

“É assim, quando eu tô vendo uma coisa na TV e aí aparece uma propaganda. É tipo, se você trabalha em uma farmácia e quer mostrar um remédio pras pessoas, aí você coloca pras pessoas saberem e tal, eu acho”. 

Théo, 10 anos, filho de Thiago, vê anúncios nos jogos de celular e nos canais de desenho animado. 

“Propaganda é o negócio chato que aparece na hora que você está jogando no celular. Tem propaganda de compra e de outros jogos. Na televisão, eu vejo Nickelodeon, Disney e Netflix, não tem propaganda de jogo, mas tem tipo de farmácia, shopping, essas coisas”.

 


Rio de Janeiro (RJ) 30/10/2024 - O professor Thiago Oliveira e seu filho Théo, de 10 anos.
Foto: Thiago Oliveira/Arquivo pessoal
Rio de Janeiro (RJ) 30/10/2024 - O professor Thiago Oliveira e seu filho Théo, de 10 anos.
Foto: Thiago Oliveira/Arquivo pessoal
O professor Thiago Oliveira e o filho Théo, de 10 anos. Foto: Thiago Oliveira/Arquivo pessoal

Questão ética 

O professor de comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF), Adilson Cabral, que ministra a disciplina de ética e legislação publicitária, explica que o tema estava em discussão na sociedade no início da década passada. Entre as instituições que fizeram campanhas pelo fim da publicidade abusiva dirigida para crianças estão o Instituto Alana, o Conselho Federal de Psicologia e o Plenarinho, programa educativo da Câmara dos Deputados. 

“O que está por trás da resolução é justamente não compreender a criança como definidora da compra, né? Então, é muito sedutor colocar uma criança numa publicidade, num filme publicitário, falando, cheio de energia e tal, para que os pais se mobilizem e fiquem sensíveis ao apelo da criança e também as crianças pressionem, de uma certa forma, os pais, para comprar o que está sendo apresentado no comercial, destaca Cabral.

Para a atual presidenta do Conanda, Marina de Pol Poniwa, psicóloga e também conselheira do Conselho Federal de Psicologia, a Resolução 163 foi motivada pelo contexto social histórico e político daquele momento. 

“Imagina que na época eram intensas propagandas como ‘compre Batom, compre Batom, compre Batom’. Esse é um dos exemplos para citar o quanto se determinava o consumo de determinados produtos, e produtos especialmente para crianças e adolescentes. E com o objetivo mesmo de persuadi-las para que consumissem determinadas coisas”. 

Poniwa destaca que as propagandas abusivas podiam gerar problemas sociais e de saúde nas crianças e adolescentes, como ansiedade, frustração, violência e obesidade infantil, pelo incentivo ao consumo de alimentos ultraprocessados e super calóricos. 

“Com toda certeza, esses processos, além de enganosos, também são danosos e colocam crianças e adolescentes em situação de desproteção social, por também enganá-las e elas terem dificuldade de se orientar a partir do que é o melhor ou não para elas, já que elas não têm uma autonomia plena sobre os processos de decisão”. 

Caminhos da Reportagem | Publicidade Infantil
 

A indústria dos brinquedos admitia que a ideia da publicidade infantil era justamente seduzir a criança para que ela fosse a definidora da compra. Em um episódio do Caminhos da Reportagem de 2011 (vídeo acima) , programa da TV Brasil, o presidente da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (Abrinq), Synésio Batista, afirma que o alvo das propagandas do setor era o público infantil. 

“A criança é o indivíduo que mais negocia na família brasileira, é o maior negociante na família brasileira. Nós temos aqui nesse país 57 milhões de crianças no nosso target de até 12 anos. Vinte milhões de crianças, eu não consigo vender nada. Mas 30 milhões de crianças decidem o que querem. Nós não fazemos propaganda para o pai e para a mãe, porque não é ele que resolve. É a criança que diz, eu quero isto”.  

A reportagem procurou a Abrinq, que não pôde gravar entrevista, mas se manifestou por meio da assessoria de imprensa. Em nota, informou que “a posição da Abrinq é respeitar o que foi determinado e zelar pelas crianças”. 

O presidente do Conselho da Associação Brasileira de Licenciamento de Marcas e PersonagensLicensing International (Abral), Rodrigo Paiva, disse que a associação não foi convidada a participar das discussões em 2014, que levaram ao fim da publicidade dirigida para as crianças, e foi surpreendida com a norma. 

“A Abral é totalmente contra qualquer tipo de propaganda enganosa e abusiva. O que nós não concordamos na Resolução 163 é a tentativa de tipificar a mera presença de excesso de cores, trilha sonora infantil, a simples presença de crianças, personalidades reconhecidas pelo universo infantil e a própria presença de personagens como um ato de abusividade”. 

De acordo com ele, o setor tem suas próprias regulamentações para coibir a abusividade nos comerciais. 

“O próprio mercado, seguindo as orientações do Código de Autorregulamentação Publicitária, criado na década de 1970, já preserva o cuidado de não estimular o consumo excessivo, o comando de compra, verbos no imperativo são proibidos, não vincular o consumo de qualquer produto a algum tipo de superioridade, o respeito aos pais e a clara identificação do conteúdo publicitário”.  

Mudanças


Movimento de vendas de brinquedos para o Dia das Crianças, comércio varejista nas ruas do Polo Saara, centro do Rio de Janeiro.
Movimento de vendas de brinquedos para o Dia das Crianças, comércio varejista nas ruas do Polo Saara, centro do Rio de Janeiro.
Movimento de vendas de brinquedos para o Dia das Crianças, comércio varejista nas ruas do Polo Saara, centro do Rio de Janeiro. – Fernando Frazão/Agência Brasil

A presidente do Conanda, Marina de Pol Poniwa, destaca que a Resolução 163 foi um marco histórico e, mesmo sem poder de lei para proibir as propagandas, tem sido usada pelo poder público para coibir a abusividade. 

“Todas as resoluções do Conanda são vinculantes, não têm o poder de lei, mas orientam e dão diretrizes para decisões, por exemplo, do Poder Judiciário, para a atuação do Ministério Público e dos defensores públicos. Então, essa resolução é utilizada até hoje nas decisões judiciais ou para orientar mesmo o sistema de garantia de direitos e na proteção das crianças e adolescentes nos territórios reais e nos territórios virtuais”. 

Para Renata, o modelo de televisão também mudou, reduzindo a exposição das crianças aos intervalos comerciais. “A Rosa, por exemplo, já não assiste programa infantil com propaganda, já vai dirigido para os episódios em específico, então ela não fica nesse ciclo de, obrigatoriamente, ter que acessar uma publicidade na TV”. 

Porém, ela destaca que o mercado de produtos infantis se adaptou aos novos tempos. “Mas eu acho que essa geração é mais assolada por propaganda do que é nossa. Porque tudo no mundo, de alguma forma, tá voltado para isso, né? Você vai ao cinema, tem o copo da pipoca do tema do cinema, aí tem um brinquedinho que vai ser vendido não sei onde, aí o chinelinho vem com o tema do filme. Então tem um outro circuito de publicidade que é tão intenso quanto, talvez até mais, né? Porque é muito mais capilarizado”. 

Thiago admite que, influenciado pelas propagandas, sentiu falta de muita coisa na infância. “Tem uma diferença hoje que, financeiramente, eu consigo dar mais coisas para os meus filhos, do que na época do meu pai. Eu acho que de certa maneira, isso gerou algum trauma em mim, de não ter conseguido muita coisa que eu quis quando era criança, mas eu sei que a propaganda tinha muito desse trabalho”. 

Atualmente, ele percebe a diferença nos desejos e pedidos infantis. “Chega fim de ano, a diferença do meu Natal para o Natal deles, a quantidade de propaganda que tinha, e aí você ficava querendo um, outro, três, quatro, cinco, vários brinquedos ao mesmo tempo. Agora, meus filhos têm uma coisa só que eles pensam que querem, só. Tem essa diferença, realmente. Óbvio que eu estou falando de uma bolha social econômica específica, né?” 

O presidente do Conselho da Abral, Rodrigo Paiva, explica que a entidade trabalha com a conscientização dos associados e divulga cartilhas sobre as melhores práticas de publicidade para o público infantil, inclusive na internet e com a contratação de influenciadores digitais. 

“De maneira proativa, capacitamos a conhecerem todas as formas corretas de se comunicar com a criança de forma responsável. A Abral criou, inclusive, milhares de exemplares de cartilhas, de forma física e digital, reforçando as orientações sobre a necessidade ética e responsável na comunicação, inclusive no ambiente digital. Desenvolvemos, em datas como o Dia das Crianças e Natal, campanhas de conscientização com o apoio de mais de 30 entidades do mercado, visando uma comunicação adequada”. 

Para o professor de ética publicitária Adilson Cabral, ainda é preciso avançar para fazer do ambiente publicitário um local mais ético, não só nos produtos voltados para as crianças. 

“O ponto de partida que eu trabalho na disciplina é compreender que existe uma criatividade responsável possível para se lidar com a inevitabilidade da publicidade. Ou seja, em qualquer contexto, considerando que existem produtos diferentes e variados, é necessário ter uma publicidade que estabeleça diferenças em relação ao que é a qualidade, ao que é a característica de um em relação ao outro produto. Então, a publicidade não deixaria de existir, mas ela precisa se assumir numa perspectiva de responsabilidade social que a falta de freio do mercado não vem proporcionando”.

Podcast


Brasília (DF), 21.08.2024 - Arte para a matéria Crianças Sabidas - Eleições 2024. Arte/Agência Brasil
Brasília (DF), 21.08.2024 - Arte para a matéria Crianças Sabidas - Eleições 2024. Arte/Agência Brasil
Radioagência Nacional lança podcast Crianças Sabidas sobre publicidade infantilArte/Agência Brasil

Confira na Radioagência Nacional o podcast Crianças Sabidas sobre publicidade infantil. De forma lúdica, os conteúdos trazem informações para o público infantil com tratamento jornalístico. 

 

Com informações: agenciabrasil.ebc.com.br

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Carta do Brics tem capítulo contra todas as formas de discriminação

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© Fernando Frazão/Agência Brasil

A Carta do Rio de Janeiro, declaração final dos líderes que participam da reunião de cúpula do Brics, que acontece neste domingo (6) e na segunda-feira (7), no Rio de Janeiro, traz um capítulo específico que manifesta compromisso contra “todas as formas de discriminação”.

“Reafirmamos a necessidade de todos os países cooperarem na promoção e proteção dos direitos humanos e das liberdades fundamentais sob os princípios da igualdade e do respeito mútuo e de combaterem a todas as formas de discriminação”, afirma trecho do parágrafo que trata de parcerias e promoção do desenvolvimento humano, social e cultural.  

O Brics é um grupo formado por 11 países-membros e dez parceiros, que se identificam como Sul Global, nações em desenvolvimento e desafios sociais similares. A reunião de líderes acontece no Museu de Arte Moderna do Rio, uma vez que o Brasil ocupa a presidência rotativa anual do grupo.  

Além do combate a todas as formas de discriminação, os países do bloco se comprometem a fortalecer a cooperação em questões populacionais para o desenvolvimento socioeconômico, particularmente no que diz respeito aos direitos e benefícios de mulheres e pessoas com deficiência, ao desenvolvimento da juventude, ao emprego e futuro do trabalho, à urbanização, à migração e ao envelhecimento. 

Direitos humanos

O trecho da declaração também faz citação direta aos direitos humanos e à democracia.  

“Necessidade de promover, proteger e cumprir os direitos humanos de forma não seletiva, não politizada e construtiva, sem padrões duplos, por meio do diálogo e da cooperação construtivos. Apelamos ao respeito à democracia e aos direitos humanos. Nesse sentido, destacamos que eles devem ser implementados tanto no nível da governança global quanto no nível nacional”, afirma o documento diplomático. 

A Carta do Rio de Janeiro aponta entre os elementos a serem combatidos o racismo, xenofobia (aversão a estrangeiros) e intolerância religiosa.

“Reiteramos a necessidade de intensificar a luta contra o racismo, a discriminação racial, a xenofobia e intolerâncias correlatas, bem como contra a discriminação com base na religião, fé ou crença, e todas as suas formas contemporâneas ao redor do mundo”. 

Os líderes advertiram ainda sobre “tendências alarmantes de discurso de ódio, desinformação e informação enganosa crescentes”. 

Os representantes dos países saudaram uma decisão da União Africana (organismo composto pelos 55 países do continente), que designou 2025 como ano de reparação para africanos e os afrodescendentes. “Reconhecemos os esforços da União Africana para combater o legado destrutivo do colonialismo e do tráfico de escravizados”.  

Em vários momentos, o documento defende a importância do empoderamento das mulheres e de garantir participação delas plena, igualitária e significativa em todas as esferas da sociedade”.  

Os países citaram discussões promovidas sob a presidência brasileira relacionadas aos impactos da misoginia e da desinformação online sobre as mulheres. 

Cultura e IA 

O grupo de países encoraja os membros a formularem programas para apoiar e fomentar as economias culturais e criativas dos países, “reconhecendo o crescente peso econômico e a contribuição dos setores culturais e criativos para a economia em geral”.  

Em referência ao passado colonial, o capítulo ainda ressalta a “importância do retorno de bens e patrimônios culturais aos seus países de origem”. O Brics defende que as relações internacionais sejam em bases não hierárquicas. 

Os países reconhecem que a Inteligência Artificial (IA) “está transformando as relações de trabalho, criando oportunidades de emprego, “mas também apresentando desafios, como o deslocamento de empregos e o aumento da desigualdade”. 

Dessa forma, o Brics se compromete com políticas inclusivas que utilizem a tecnologia de forma responsável para garantir a IA para o bem e para todos, “levando em consideração as políticas nacionais, as regulamentações e os acordos internacionais aplicáveis”.

A quatro meses da COP 30 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas), que será realizada em novembro, em Belém (PA), o Brics reafirmou compromisso com o aumento do financiamento e com o fortalecimento da governança, da solidariedade e da resiliência na redução do risco de desastres, “incluindo aqueles relacionados à mudança do clima, especialmente para o Sul Global”.

Brics 

O Brics é formado por 11 países-membros: África do Sul, Arábia Saudita, Brasil, China, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia, Indonésia, Índia, Irã e Rússia. Essas nações representam 39% da economia mundial e 48,5% da população do planeta. 

Os países que têm status de parceiros são Belarus, Bolívia, Cazaquistão, Cuba, Malásia, Nigéria, Tailândia, Uganda, Uzbequistão e Vietnã. Os parceiros não têm poder de voto. 

Os países-membros se alternam ano a ano na presidência. O Brasil será sucedido pela Índia em 2026. 

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‘Sociedade lucra sonegando direitos às domésticas’, critica sindicato

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© Tânia Rêgo/Agência Brasil

Aprovada há dez anos, a Lei das Domésticas, como ficou conhecida a Lei Complementar 150, é considerada um marco por regulamentar direitos dos trabalhadores domésticos conquistados a partir da Emenda Constitucional 72, a PEC das Domésticas. Passado esse tempo, a categoria, formada por uma maioria de mulheres negras, ainda enfrenta barreiras para ter a carteira de trabalho assinada e os novos direitos. Outro desafio é inclusão das diaristas, deixadas de fora da lei.

Na avaliação da presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Município do Rio de Janeiro, Maria Izabel Monteiro, a LC 150 introduziu direitos importantes, como a jornada máxima de 44 horas semanais, o pagamento de horas extras, adicional noturno e a obrigatoriedade do pagamento do FGTS. Porém, a sociedade, como um todo, se beneficia da economia do trabalho doméstico, que libera tempo para outros profissionais, mas sonega encargos e ignora direitos da categoria.

“A sonegação vem porque a própria sociedade vê um valor social menor neste trabalho e ignora os direitos das domésticas” afirmou a dirigente. “A classe média alta não considera o trabalho doméstico como profissão, mas não abre mão de ter uma trabalhadora em casa. Quem é empregador – e tem direitos trabalhistas – precisa saber que aquela pessoa que cuida do seu bem maior, da sua casa, de seus filhos, de seu pai, mãe, avô, avó, não é da família e tem direitos”, completou Maria Izabel. Ela defende mais fiscalização, com blitzes em condomínios, por exemplo.

O Brasil tinha 5,9 milhões de trabalhadores domésticos em 2022, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Cerca de 91% são mulheres, e sete em dez são negras. A metade dos trabalhadores domésticos (52,9%) é chefe de família, e só dois em dez possuíam carteira assinada. 

“Falhas na lei”

Apesar dos benefícios trazidos pela Lei Completar 150, a coordenadora-geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), Creuza Maria Oliveira, cobra também o reconhecimento das diaristas como domésticas, e a correção do que ela chamada de “falhas” na lei. As domésticas foram excluídas do abono salarial (PIS), pago aos trabalhadores que ganham até dois salários mínimos, e só têm direito a três parcelas de auxílio-desemprego, com teto de R$ 1.518 (um salário mínimo). Os demais trabalhadores formais recebem cinco parcelas, de até R$ 2.424,11.

“Essa questão do seguro-desemprego é difícil porque, quando a gente é mandada embora, ganha menos, e há uma série de regras novas que dificultam o resgate, se você ficou menos de um ano em uma casa, por exemplo”, disse Maria*, que hoje é babá e trabalha desde os 10 anos de idade em casa de família. Ela reconhece avanços, mas cobra a igualdade.  “A única coisa que a gente ainda não tem é o PIS, mas assinar a carteira foi bom. Quando eu comecei, em Guarabira, no interior da Paraíba, a gente não ganhava R$ 100 por semana. Até hoje, o pessoal lá não paga um salário”, contou.

A pedido da categoria, a equiparação dos direitos das domésticas e inclusão das diaristas na LC 150 está em discussão no governo federal. De acordo com a subsecretaria de Estudos do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) Paula Montagner, a medida é complexa e exige discussão com a sociedade. “Qualquer medida ou legislação apresentada pelo Executivo demanda ir ao Congresso [Nacional] e ser capaz de convencer o legislador nessa direção”. Porém, Paula reconheceu que o ministério precisa “facilitar o recolhimento patronal combinado”.

Em 2015, a lei complementar garantiu aos domésticos também a indenização por demissão sem justa causa, o pagamento de horas extras, folga semanal remunerada e o direito a intervalo para repouso ou alimentação de uma hora, no mínimo, por dia, admitindo-se a redução para 30 minutos por meio de acordo. Para assegurar o registro, a trabalhadora precisa ser inscrita pelo patrão no Sistema E-social.

Os direitos conquistados são uma forma de reconhecer a importância da profissão, na opinião de Tâmara*, que é empregada doméstica registrada. Porém, mais medidas de valorização são necessárias.

“A gente dá nosso tempo, amor, carinho, a gente se dedica às crianças, aos idosos, é um trabalho cansativo, que libera tempo para os outros moradores, mas que não é respeitado, muitas vezes, somos maltratadas pelos patrões”, reclamou. Ela se refere a violências, como o assédio moral e sexual.

Tâmara é mãe solo de duas crianças e complementa a renda como folguista aos finais de semana e no contraturno. Segundo a PNAD, em 2022, quatro em dez domésticas eram pobres (26,2%), com renda de até meio salário mínimo, ou extremamente pobre (13,4), com renda menor que um quarto de salário mínimo. Mulher negra, pobre, chefe de família e com baixa escolaridade, Tâmara tem o perfil da trabalhadora doméstica no país.

Na avaliação de Anazir Maria de Oliveira, assistente social e pioneira na luta das domésticas, a desvalorização da categoria tem raízes na escravidão. O fim do regime não garantiu empregos assalariados a pessoas negras, e a relação com as domésticas espelhou a casa grande, com formas de assédio, violência e maus tratos.

Creuza Oliveira, da Fenatrad, concorda que a resistência ao pagamento das domésticas está enraizada no passado, o que explica a rejeição à formalização.

“[Patrões] Passaram décadas e décadas sem pagar nada, tendo os serviços dessas mulheres em suas casas, em suas fazendas e em seus apartamentos, sem pagar nada”. Além disso, por ser feito por mulheres, nunca foi valorizado, refletiu Creuza.

Trabalho doméstico escravo

Autora da PEC das Domésticas, a deputada Benedita da Silva (PT-RJ), que também atuou pela LC 150, vê ainda outra barreira para enfrentar a exclusão histórica das domésticas: o trabalho doméstico escravo.

“Nós temos tido avanços, mas ainda não concluímos a tarefa de ter as trabalhadoras domésticas com seus direitos conquistados cumpridos pelos seus empregadores”, afirmou a deputada à Agência Câmara.

Para melhorar a fiscalização, a subsecretaria Paula Montagner, do MTE, informou que é necessário construir “um percurso legal”, que está em discussão na área de inspeção, e envolve outras áreas, como as polícias, a assistência social e o Judiciário.

Para denunciar trabalho escravo doméstico, ligue para o Disque 100, registre a queixa sistema Ipê do MTE ou no site do Ministério Público do Trabalho (MPT).

*Nome fictício para preservar a identidade da entrevistada.

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Federação de domésticas reivindica mesmos direitos para diaristas

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© Valter Campanato/Agência Brasil

A exclusão das diaristas da Lei Complementar 150, que regulamentou os direitos dos trabalhadores domésticos é uma violação à Convenção 189 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. A avaliação é da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad), entidade que defende uma revisão da lei brasileira, que completou dez anos, para que as diaristas tenham os direitos equiparados aos trabalhadores formais.

“A gente vem lutando pela equiparação de direitos das diaristas, porque a gente sabe que muitas pessoas trabalham um ou dois na semana, mas têm vínculo [empregatício], sim, embora o vínculo não seja reconhecido”, afirmou a coordenadora-geral da Fenatrad, Creuza Maria Oliveira.

“Tem trabalhadora que, uma vez na semana, leva anos e anos na mesma casa, e a Lei 150, apesar dos avanços, não reconhece”, completa.

Segundo a federação, a lei brasileira discrimina a trabalhadora por diária, “fazendo dela uma ‘autônoma’ e jogando sobre a profissional as contribuições previdenciárias”. Creuza lembrou que outras categorias, como médicos e professores, trabalhando um ou dois dias na semana, têm o direito ao reconhecimento como empregados.

A Lei 150 garantiu jornada semanal de 44 horas, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), hora extra, adicional noturno e aviso prévio, por exemplo, somente às domésticas que trabalham pelo menos três dias na mesma casa, diferentemente do que determina a resolução da OIT. No normativo internacional, é empregado doméstico quem trabalha nas residências, independente de receber por dia ou mês.

Com a exclusão das diaristas da lei, em 2015, havia uma expectativa de que elas ganhassem salário maior que as mensalistas, lembrou a economista Cristina Vieceli do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). No entanto, as pesquisas do órgão mostram que, em média, elas só conseguem trabalhar 24h por semana e ganham menos que R$ 1 mil. Essa realidade dificulta, inclusive, que elas façam a contribuição para a previdência por conta própria. Do total de domésticas no país, somente um terço pagava a Previdência Social em 2022, segundo o Dieese.

“Essa situação representa um desafio importante, considerando que as diaristas têm jornadas mais instáveis, e não vão, necessariamente, conseguir trabalhar todos os dias, o que faz com que elas tenham um salário mensal menor do que as mensalistas, e um vínculo mais precarizado no trabalho”, explicou Vieceli.

Também é comum essas trabalhadoras extrapolarem o limite da jornada, de 8 horas, e acabarem mais sujeitas a acidentes e lesões, embora não contem com a previdência social. Para a economista, o Brasil precisa resolver o impasse em relação à Convenção da OIT.  

A federação critica que, com a lei complementar, os patrões se eximiram dos encargos sociais das diaristas, sem que o Estado assumisse essa responsabilidade. “A diarista, se ela não tiver informação, se ela não tiver condições, ela vai chegar daqui a 30 anos sem aposentadoria, apesar de ter trabalhado, às vezes, por toda uma vida”, pontuou a presidenta do Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Município do Rio de Janeiro, Maria Izabel Monteiro.

De 2013 para 2022, as diaristas passaram de 37,5% dos trabalhadores domésticos para 43,6%. As mensalistas, em outro sentido, diminuíram de 62,% para 56,4%.

Como exemplo da marginalização desse grupo, a Fenatrad lembra que “a falta de proteção social durante a pandemia empurrou milhões para a pobreza extrema”.

Sem direitos, a Fenatrad chama atenção para o perfil desse grupo: a maioria é de mulheres negras ─ sete em cada dez desses profissionais ─ que são chefes de famílias, sendo quatro em dez pobres ou extremamente pobres. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD) de 2022, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que investigou o perfil dos domésticos no país.

Trabalhadora domestica não é MEI

Outra preocupação da federação é com o registro de diaristas como Microempreendedora Individual (MEI), “um desvio da lei”, segundo a entidade, mas que vem sendo exigido por agências e plataformas que intermediam serviços.

A federação quer que o governo impeça o registro das diaristas como MEI e apresentou o pleito ao Ministério do Trabalho e Emprego. A legislação do MEI, no entanto, cabe a um conselho, do qual fazem parte vários ministérios, e ainda não há unanimidade sobre o que fazer, explicou a subsecretaria de Estudos da pasta, Paula Montagner.

“O MTE vem conversando com a Receita [Federal], com o Ministério da Micro e Pequena Empresa, explicando que, para ter uma aposentadoria, a trabalhadora doméstica precisa contribuir com mais de 5% (valor exigido pelo MEI)”, disse. “No entanto, há visões mais imediatistas, digamos, e não uma visão de médio e longo prazo para um sistema previdenciário mais seguro, embora o MTE conheça a realidade das diaristas e venham chamando atenção para a necessidade de adequações”.

Em agosto de 2024, segundo a Fenatrad, meio milhão de diaristas ou cuidadoras de idosos estavam cadastradas como MEI, sem direito aos benefícios da LC 150. O sindicato das domésticas no Rio apoia a campanha da Fenatrad esclarecendo que “trabalhadora doméstica não é empreendedora”.

“Se eu tenho o comprometimento de ir em uma residência durante todo o ano, uma ou duas vezes na semana, tem um vínculo”, frisou Monteiro.

“As trabalhadoras domésticas nos contam, aqui no sindicato, que as agências de emprego pedem para elas tiraram o MEI”, denunciou Maria Izabel. “Quando eu conheci as agências, antes, elas faziam a intermediação (entre patrão e empregada). Agora, para fugirem dos direitos trabalhistas, a agências, vamos dizer, induzem as trabalhadoras serem MEI para fazer um contrato. E, muitas, por falta de informação, na inocência, acabam aceitando e ficando sem direitos”, explicou a dirigente.

 

A advogada Bruna Fernandes Marcondes, associada da organização não governamental Themis ─ Gênero, Justiça e Direitos Humanos, acrescentou que o MEI é uma solução intermediária para um problema que deve ser resolvido com a equiparação.

“Temos observado, atendendo às trabalhadoras, que os empregadores criam o cadastro no nome delas. Muitas não tomam nem conhecimento e [quando não pagam as taxas e descumprem regras] acumulam dívidas fiscais”, alertou. Bruna lembrou que a categoria é de mulheres maduras, acima de 30 anos, só com o ensino fundamental”.

“Precisamos lembrar que o nosso sistema de seguridade social é uma cooperação em três partes: quem emprega e usufruiu daquela mão de sobra, quem trabalha e contribui solidariamente não só para si, mas para os demais, e o Estado. Nessa conta [do MEI], a única parte que é poupada é o empregador”, destacou a advogada.

Diarista pode ter carteira assinada

Mesmo não sendo obrigatória, a LC 150 permite a assinatura da carteira das diaristas com salário proporcional às horas trabalhadas, em tempo parcial. O documento pode ter a assinatura de cada patrão disposto a conceder os benefícios trabalhistas, como férias e 13º, além de arcar com o FGTS dessas trabalhadoras. Em geral, os custos chegam a uma diária a mais por mês. Para pagar, é preciso cadastrar a diarista no E-Social e seguir o passo a passo do sistema por meio de uma conta Gov.Br.

Com a LC 150, as empregadas têm direito a receber aviso prévio, pagar indenização, garantir a estabilidade, no caso de empregada gestante, descanso semanal remunerado, entre outros direitos previstos aos trabalhadores formais. A exceção são o abono salarial, pago para quem ganha até dois salários-mínimos, e as cinco parcelas do seguro-desemprego. Os domésticos só podem sacar três e o teto é menor.

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